quarta-feira, 2 de novembro de 2016

o que sobrou






passo a mão pelo meu corpo enquanto me ensaboo, e lembro-me de ti.
invariavelmente lembro-me de ti quando me apercebo do meu corpo.
lembro-me da violência das tuas mãos paradas enquanto ias e vinhas dentro de mim.
eu, violentada por mim porque te permiti.
eu, violentada por ti que te ausentaste de mim, inteira, para te presenteares em mim, pedaço.

não, não há verbo para o que fizemos juntos.

já se passaram meses e ainda não encontrei palavras para te falar do que fui eu naquele durante.
nesta página em branco, ensaio frases que escrevo e apago, torno a escrever e a apagar, todos os dias, desde esse dia, sem encontrar como te definir em mim. sem encontrar como te falar de mim.

na tentativa de entender,
retrocedo até ao tempo antes de ti.
retrocedo até ao tempo em que te olhava de longe e te queria por perto.
retrocedo até ao tempo em que te tive na margem de mim.
retrocedo até ao tempo em que te tive por dentro e te quis tão longe.
nesse retrocesso perco toda a credibilidade em mim.

pensar que tanto caminho fiz, tanto tempo gastei, tanto homem recusei, para chegar a ti como quem nasce de novo. e em vez de renascer, perecer.

invadiste-me. a minha vida, o meu corpo, o meu tempo, o meu ninho, o meu âmago. invadiste-me.

com todos os homens que passaram por mim, de alguma forma cresci, na dor, no prazer, na carne, na alegria, no conhecimento, na sabedoria. como mulher sempre me fortaleci. de ti, ficou esta falta de tudo e a certeza de nada.

o que sobrou de ti em mim?
estas palavras feridas.