domingo, 27 de novembro de 2016

as palavras












sentiu uma náusea no peito. jamais voltaria ao instante antes da desilusão.
é costume, dissera-lhe ele, reduzindo os aconteceres a banalidades.

e os poemas que ele lhe escondera nos recantos do corpo, estilhaçaram-se na lonjura do olhar.







quarta-feira, 16 de novembro de 2016

a estação por dentro











conto-te do desperdício das estradas percorridas dos rios atravessados do tempo gasto do cansaço sentido
sem ser para ti
trazia nos meus olhos as cores todas dos outonos todos para pousar nos teus olhos
não te vi 










sábado, 12 de novembro de 2016

poderá a distância também deixar de ser longitude?








repara
anoiteceu
o dia esfumou-se e não sei onde ficaram as 24 horas
é urgente encher cada hora de vida, adensar o dia, adentrar a vida
é a única forma de não perder os dias de não perdermos a vida
deixa-me pousar demoradamente os meus olhos nos teus
também deslizarei lentamente os dedos na tua pele
imagina
o meu rosto tão perto do teu pescoço enchendo o meu peito com o teu perfume
ninguém notou que o tempo deixou de existir e que a vida vale pelo que vivemos
cinquenta anos é nada
um dia é uma vida
repara
o sábado acabou
anoiteceu
o dia não chegou a ser








quinta-feira, 10 de novembro de 2016

e, com sorte, sonharei contigo







escrevo-te de olhos fechados
- os meus olhos já se fecharam
- pois, está a escrever de olhos fechados - dizes
estou.
fecho os olhos e imagino-te. ontem cheguei mesmo a sentir o teu corpo na minha mão. a textura da pele, a temperatura, a resistência da carne ao toque, a surpresa, a cedência.
tu pões as palavras no lugar certo, no momento certo, fazes tudo certo quando escreves. adivinhas-me, coincides-me. 
eu sorrio.
tu não me vês.
deitada, ponho os óculos para te ler, respondo, tiro os óculos, fecho os olhos, para de seguida colocar os óculos, escrever-te, tiro os óculos, fecho os olhos e começo a sonhar, para depois recomeçar tudo outra vez. brincas de não me deixar dormir, e eu deixo.
o meu corpo está tão habituado às tuas palavras, que reage antes de te ler. e tu sabes, fazes delas ondas e brisa e pluma e perfume e toque de algodão.
adormeço com os óculos postos. 
estão todos torcidos, os óculos, e o meu pescoço também.











quarta-feira, 9 de novembro de 2016

são cada vez menos as palavras que merecem maiúsculas









meu querido, o trump ganhou as eleições nos eua. no meio deste absurdo todo fica-me a certeza de que tudo é possível. 
quebremos as regras, não pensemos em consequências, vamos deitar fora a lista de conduta das nossas limitações. vamos ser loucos e irresponsáveis para nosso prazer, num mundo sem amanhã previsto, liderado por loucos por poder, eleitos por pessoas ávidas de supremacia.

as dias já não serão muitos, meu querido.










domingo, 6 de novembro de 2016

eu sei porquê







mas ele tem o dom de me adivinhar. 
e eu deixo.
então chega, com a bagagem cheia de palavras,
...
dedos
mãos
pele
cuidado
atenção
tentação
macio
marca
embalo
música
ondulação
café
...
e como se trouxesse as chaves certas, entra em cada fechadura do meu corpo, 
e desperta-me,
...
olhar
saliva
arrepio
vertigem
desejo
repouso
alegria
liberdade
aceitação
vontade
querer
abandono
amparo
...
ele faz-me sentir mais do que o que eu sei de mim.

e parte








quarta-feira, 2 de novembro de 2016

o que sobrou






passo a mão pelo meu corpo enquanto me ensaboo, e lembro-me de ti.
invariavelmente lembro-me de ti quando me apercebo do meu corpo.
lembro-me da violência das tuas mãos paradas enquanto ias e vinhas dentro de mim.
eu, violentada por mim porque te permiti.
eu, violentada por ti que te ausentaste de mim, inteira, para te presenteares em mim, pedaço.

não, não há verbo para o que fizemos juntos.

já se passaram meses e ainda não encontrei palavras para te falar do que fui eu naquele durante.
nesta página em branco, ensaio frases que escrevo e apago, torno a escrever e a apagar, todos os dias, desde esse dia, sem encontrar como te definir em mim. sem encontrar como te falar de mim.

na tentativa de entender,
retrocedo até ao tempo antes de ti.
retrocedo até ao tempo em que te olhava de longe e te queria por perto.
retrocedo até ao tempo em que te tive na margem de mim.
retrocedo até ao tempo em que te tive por dentro e te quis tão longe.
nesse retrocesso perco toda a credibilidade em mim.

pensar que tanto caminho fiz, tanto tempo gastei, tanto homem recusei, para chegar a ti como quem nasce de novo. e em vez de renascer, perecer.

invadiste-me. a minha vida, o meu corpo, o meu tempo, o meu ninho, o meu âmago. invadiste-me.

com todos os homens que passaram por mim, de alguma forma cresci, na dor, no prazer, na carne, na alegria, no conhecimento, na sabedoria. como mulher sempre me fortaleci. de ti, ficou esta falta de tudo e a certeza de nada.

o que sobrou de ti em mim?
estas palavras feridas.