domingo, 23 de setembro de 2018

ele






ele é o meu segredo mais bem guardado.
até de mim é segredo.





terça-feira, 28 de agosto de 2018

sem que ele note




tão longe vai o tempo em que ele morria em mim. acontecia aos poucos, a imagem dele a querer fugir do meu peito, ele a ausentar-se lentamente dos meus dias, a ânsia de o ver, a acalmar-se. mas depois, e aí sim, de repente, como um terremoto ou uma tempestade, renascia o sentimento por ele, a vontade dele, a urgência dele. como todo o fenómeno, que se mostra violento, e que muda uma paisagem, também dessa forma ele irrompia de dentro da minha pele, e o tocar não voltaria nunca a ser o mesmo se não fosse tocado por ele, a minha respiração procurava o arfar dele, o meu arrepio, os poros dele, também.
mas agora, com a suavidade com que uma estação dá lugar a outra, ou com que os dias se tornam mais curtos ao aproximar-se o outono, é ele que me perde sem que o note. e daqui, de longe, eu assisto a esta perda de mim, nele, sem que ele o note, também. 
talvez um dia, debaixo de um aguaceiro, ou apenas num dia cinzento, ele note o meu olhar fugidio, nas asas de uma ave que parte.




quarta-feira, 22 de agosto de 2018

sobre ele







mesmo quando, falando de outra, é de mim que eu falo, ele sabe que é sobre mim que falo

sobre ele







mesmo quando, não falando dele, é dele que eu falo, ele sabe que falo dele









segunda-feira, 13 de agosto de 2018

despega-se-me







é como se ele chegasse, esbatido, a cada esperança renovada, a cada ânsia de não perecer na asfixia da ausência.
mas depois, ele parte. 
está sempre a partir a cada dia que não chega.
e nunca chega.
e está sempre a partir.







terça-feira, 31 de julho de 2018

um






poderá um olhar resgatar anos de uma vida desencontrada?





sexta-feira, 15 de junho de 2018

chão









Seguro-me ao fio invisível que me liga a ele, à esperança de que em algum lugar a vida possa ter o perfume da água fresca em terra árida.







segunda-feira, 4 de junho de 2018

peças




então és tu....
por detrás desses óculos, e olho-te nesse modo aprumado de estares, casaco azul escuro, camisa azul clara, a cor do céu ao peito, o olhar que não pára, as mãos dadas uma na outra
tantas peças juntei e agora o puzzle completo não me conclui em nada







desarrumação







Nunca duvidei da minha capacidade imensa para esquecer. Brincava de construir castelos de esperança e fantasiava conversas e paisagens partilhadas, assim como as crianças criam amigos imaginários. Mergulhava em sonhos, como quem apanha as ondas do mar - submergia neles e emergia na realidade.
Mas tudo o que guardei dele foi no coração, em vez de deixar caído num qualquer recanto bafiento da mente. É que a mente esquece, mas o coração tatua. 





quarta-feira, 30 de maio de 2018

ele



tudo é ele. até o nada é ele.
ele enche todo este espaço vazio, o silêncio grita o seu nome, a ausência toda ela cheia da falta dele.





sábado, 19 de maio de 2018

pouquices






o homem diz à mulher que no lugar que lhe foi destinado no peito, para o seu coração, não lhe cabe o imenso amor que sente por ela.
a mulher, que de tanto trazer nas camadas da pele o amor que sente por outro homem que tem em tudo o que toca, o amor por outra mulher, não sente o calor do homem que tem um lugar pouco no peito.








domingo, 6 de maio de 2018

colorir









Às vezes sou pequenina e corro para ele, para que agarre a minha mão trémula para me ajudar a atravessar alguma estrada muito barulhenta, ou a entrar numa noite muito escura e só e fria.
Às vezes uma só palavra dele basta, para colorir um dia todo cinzento.
Mas ele assusta-se, talvez porque também ele seja um menino a disfarçar de pessoa grande, e finge que não me vê, ou não me vê mesmo.










domingo, 8 de abril de 2018

mas para que servem dias neutros?









Foi a custo que despi o macacão feito do meu sentimento por ele. O fecho éclair trilhou os poros onde guardava os detalhes dele, deixando a nudez em ferida. A memória gravada nos meus dedos, ainda os guia pelos trilhos dos seus, e os meus pés ainda seguem as pegadas das palavras que ele deixou espalhadas pelos vincos da minha alma. 
Um dia, a chuva levará o perfume e as marcas e os dias voltarão a ser neutros, outra vez.











segunda-feira, 2 de abril de 2018

quelóide









ficou funda a ferida e densa cicatriz, insensível.












domingo, 1 de abril de 2018

para que renasça








conto os dias todos que vivi com ele em lugares por dentro de mim e pergunto como se pode despir o que vestimos por debaixo da pele sem que sangre.









quinta-feira, 8 de março de 2018

If I Could Tell You



Time will say nothing but I told you so,
Time only knows the price we have to pay;
If I could tell you I would let you know.

If we should weep when clowns put on their show,
If we should stumble when musicians play,
Time will say nothing but I told you so.

There are no fortunes to be told, although,
Because I love you more than I can say,
If I could tell you I would let you know.

The winds must come from somewhere when they blow,
There must be reasons why the leaves decay;
Time will say nothing but I told you so.

Perhaps the roses really want to grow,
The vision seriously intends to stay;
If I could tell you I would let you know.

Suppose all the lions get up and go,
And all the brooks and soldiers run away;
Will Time say nothing but I told you so?
If I could tell you I would let you know.

W.H. Auden











sexta-feira, 2 de março de 2018

eu não queria nada dele






o que eu queria dele, era que ele chegasse a mim como quem recebe a brisa do mar, estivesse comigo por egoísmo e viesse livre. queria que mesmo vestida, ele visse toda a minha nudez e se me apresentasse despido de roupagens. queria-o criança, com lágrimas ou risos e que se abrigasse nos meus braços, e, queria confiar o meu sono ao lado dele e que ele descansasse junto a mim. queria a vida a passear-se por nós os dois, desenhando mapas no corpo e dando brilho aos nossos cabelos. queria mostrar-lhe as minhas ignorâncias e os meus saberes e aprender com ele. 
o que eu queria dele, era que ele estivesse comigo quando estivesse comigo e que crescêssemos juntos, mesmo estando longe.












quinta-feira, 1 de março de 2018

coja





Fernando Vallejo Rendón




segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

insuspeito









abrigo-me nele de formas que ele nunca suspeitará. aninho-me nas suas palavras, entrelaço os meus dedos na ideia dos seus dedos, as minhas pernas repousam encostadas ao calor que imagino que as dele emanam. 
o meu mundo roça o dele sem que ele o saiba. separados por um fino tecido de seda, transparente, trago o meu peito cheio dele, de tal maneira fundo, que acordo e adormeço a seu lado, irremediavelmente.









domingo, 11 de fevereiro de 2018













sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

distância






ele foi-se embora quando o frio chegou. na verdade, já tinha ido há muito, mas foi com o frio que deixei de o ver.
depois de ele ir, aconteceu o meu corpo e os electrodomésticos começarem a avariar-se. primeiro foi a máquina de lavar roupa, depois a da louça, de seguida a placa do fogão.
se me perguntar se eu queria que ele ficasse, respondo-lhe que não. não queria. só queria que tudo fosse diferente e que o meu corpo e os electrodomésticos não me falhassem.
o que se passa agora? é que deixei de conseguir escrever cartas de amor, ou lá o que era aquilo. distanciei-me, é isso. do quê? daquilo que é bonito, do quase belo.






domingo, 4 de fevereiro de 2018

condicional








poderia ter ido ter com ele, como tantas outras terão ido ter com ele. 
mas não fui. os quilómetros são muitos e as portagens também. e depois, há as pontes e eu tenho tanto medo de atravessar pontes.
poderia ter lido poesia e os grandes filósofos, se não gastasse os meus dias nesta labuta incessante de quem não tem outra habilidade para sobreviver.
mas não li. arrasto os olhos pelas misérias do mundo, e na hora dos poemas, adormeço.
poderia entristecer-me pela distância, mas não me sinto triste. a única tristeza que sinto é a do cansaço do corpo.
poderia sofrer por amor, se não tivesse nada que fazer, mas o que me faz mesmo falta, é um banho quente ao final do dia.
poderia ter o seu corpo em concha, a acolher o meu. mas em vez dele, tenho sempre um lugar fresco na cama, para aliviar a minha pele, ardente.











quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

medidora de palavras





estivemos tão perto na indisível distância, que eu diria, que num momento qualquer nascemos outros, gente comum, submissos perante a vida, fazendo da visão, aquilo que os olhos alcançam.













terça-feira, 23 de janeiro de 2018

era uma vez







a verdade é que perdi as palavras com que conseguia arrancar-lhe sorrisos. e fazê-lo rir, fazia de mim alegre. e esse foi o primeiro desencontro. eu ser alegre devia morar em mim e não nele. começou tudo ao contrario. e as coincidências onde nos encontrávamos, descoincidiram. e foi com as descoincidencias que as palavras começaram a faltar. e quando faltam as palavras, há os olhares, mas os olhares desviaram-se sem nada que ler. depois, ficaram aqui os meus pés cruzados, um em cima do outro, as mãos dadas, também uma na outra, por detrás do pescoço, do meu, e o corpo cansado.









domingo, 21 de janeiro de 2018

cinzas




De noite, quando o frio entra pelas casas, e um resto de solidão gela o fundo da alma, aqueço-me com o fogo que me deixaste.
De manhã, recolho as cinzas.

Nuno Júdice






domingo, 14 de janeiro de 2018

pela pele dele






nunca disse o nome dele em voz alta, mas, hoje, encontrei-o escrito a lápis, letras maiúsculas decalcadas várias vezes, emolduradas num rectângulo tosco de carvão. 
os meus dedos passeiam-se pelo relevo do papel, como o meu sonho pela pele dele.








domingo, 7 de janeiro de 2018

perdi-lhe o jeito




a verdade é que lhe perdi o jeito. sinto-o. foi preciso muito pouco tempo, apenas o tempo de descurar a pontuação numa frase sem importância e os meus dedos hesitam entre um ponto e uma reticência, ou sem saber como percorrer os seus cabelos prateados, que é o mesmo que tentar escrever poemas.
perdi-lhe o jeito.
já não sei onde colocar o riso nem a maciez dos lábios num sussurro. perdi-lhe o jeito, perdi-lhe a mão. já nem a minha pele encosta na dele e os meus poros já não se exaltam com a ideia da proximidade dos poros dele. já não sei passear-me pelo seu corpo e o pudor ocupou o lugar da entrega no meu olhar, quando o olho, cada vez menos.
perdi-lhe o jeito.
os textos voltaram a ser um conjunto de palavras e os quadros uma porção de cores. os dias são apenas 24 horas e as árvores deixaram de falar o que ele cala. 
agora a noite caiu e perdi-lhe o jeito.